quarta-feira, 3 de abril de 2019

parte do primeiro capítulo de meu livro de ficção

Helena

Sentada e calada entre indignações sufocadas naquela sala com cheiro de opressão, Helena sabe que aquele é o dia mais importante de sua vida. Pensa: “o cheiro de madeira velha das paredes já me é familiar”. Pensa: “quem diria que passaria tantos dias de minha vida numa sala de tribunal”. Pensa: ”Será que Gregório estava certo e estou, finalmente, maluca?” Acredita que não, mas todo louco se acha normal. Quem se acha louco é que tende a ser normal.
Os olhos, ela sabe, estão examinando tudo e nada em particular. A ansiedade é tanta que seus pensamentos não vão muito longe, logo é arrastada de volta para o que a espera nas próximas horas. Tenta antecipar ambos os veredictos, para acostumar o peito com arfadas de alegria ou de escuridão. Os extremos ocupam o negro de seu estômago: o absurdo de ganhar a causa, e sua felicidade inconcebível; e o absurdo de perdê-la, e a consequente aniquilação de qualquer sentido de viver dali para frente, tão sozinha no caminhar não iria mais suportar. 
Um veredicto significaria vida em dobro: juntos poderiam começar uma nova jornada, como se nada houvesse antes, como se a vida até ali fosse apenas um ensaio de uma peça de mau gosto. Ela se reinventaria como mãe; ele, como filho. O outro veredicto, impensável mas de maneira alguma improvável, seria dupla morte. A morte da crença num mundo em que prevalesça, realmente, o amor, como pregam mas nem sempre praticam os normais. E a morte do futuro, com um passado tocando ad nauseam a mesma canção.
Ela se puxa de volta à realidade. Usa táticas que Maria, sua psicóloga, um dia lhe ensinou. Inspira em quatro segundos, segura quatro, expira em quatro, segura quatro. Depois repete. Tenta sentir o banco duro sob suas nádegas, o calor que o ventilador soprava, o leve tremor de suas mãos. Tenta ouvir pássaros, motos passando na rua, uma obra qualquer soldava alguma coisa. Pensa: “por que sempre tem algo quebrado precisando consertar? Por que essa cidade vive sendo remendada? E, se estão construindo algo novo, por quê? Para onde mais esse monstro pode crescer sem destruir algo no caminho?”. Percebe que a meditação já saiu de foco, irrita-se com a rapidez com que foi levada a se desconcentrar. Lembra que o objetivo nunca é se irritar quando se está meditando, e fica irritada com a própria irritação. Decide que tentar meditar quando se está no olho do furacão é pior do que nem tentar.
Olha para o juiz e seus óculos grossos. Arruma papéis, lê papéis, arruma papéis, lê papéis. Será que é um tique? Não pode ser que tenha tanta coisa para arrumar quando se está prestes a pronunciar um veredicto de tamanha importância. Toda leitura certamente já deveria ter sido feita. Seria um outro caso, então? Poderia estar tão relaxado quando se está prestes a emitir algo que mudará completamente vidas? Ou faz para manter as aparências? Repara as lentes sujas, o cabelo que sai da orelha, a roupa salpicada de caspa, uma careca pouco reluzente, enquadrada por um saiote ridículo de cabelos pintados de preto com sombras ruivas. Pensa: “esse juiz não ama e não é amado, ou não estaria assim”. Pensa: “vou perder, ele não se importa com famílias, com corações dispostos a se unir”. Começa a se desesperar novamente, mal contém lágrimas antecipatórias. Depois o vê chacoalhando a mão, o dedão encostado na ponta do nariz, fazendo graça a um garoto de uns seis anos que balança as pernas inquieto, e pensa: “Ele gosta de crianças, ele acredita no futuro, ele está conosco”. Deixa-se inundar por um leve calor no peito e tem vontade de beijar aquela cabeça suja, cortar aqueles pelos da orelha, passar uma escovinha em seus ombros. Quer ser amiga do juiz. Por que não?
O juiz a olha, percebendo que o fitava. Ela desvia rapidamente o olhar para um ponto no chão. Faz um ar de humildade, de coitadinha, caso o juiz ainda a esteja encarando. Volta-lhe o olhar, para saber se o teatro ainda tem audiência, mas ele já está de volta a seus papéis. Sente-se um pouco idiota dessa pequena, talvez imperceptível encenação. O veredicto já havia sido alcançado, não tem mais por que seduzir. Está tudo em algum dos papéis que o juiz arruma e lê para si, que em breve será lido em voz alta, que em breve mudará sua vida.
Sem saber o que fazer com as mãos, Helena vê seu celular às escondidas. Busca fotos e vídeos para se lembrar da trajetória que a levou até aqui. Foram tantos meandros, tantas lutas internas e externas, que ninguém acreditaria se ela contasse. Um policial a lança um olhar censurador, aponta disfarçadamente para a placa de proibido celular. Ela se apressa em guardar o telefone, em lhe dizer com o olhar: “desculpa, está errado, não vou repetir”, como se ganhar a simpatia de um policial da sala de justiça fosse fazer alguma diferença - relembra que o veredicto já existia, não importa mais. Mesmo assim, intuia que doravante precisava estar em bons termos até com o menos influente dos indivíduos que representasse O Sistema.

Sem o celular nas mãos e à espera, Nietzsche lhe viera como um golpe no estômago. “Você precisa estar pronto para se queimar em sua própria chama. Como pode se tornar novo sem antes ter virado cinzas?” fechou os olhos e tentou lembrar de como tudo começou, cinco anos que cabem numa vida inteira. O que o eterno retorno lhe reservaria adiante, se tudo há de se repetir?

Isso não é um poema

Esses dias tive um alumbramento.  Entendi tudo.  A história de dormir humano e acordar  borboleta E dormir borboleta e acordar  humano....