À medida que o tempo passa, fica mais claro: nunca as coisas entrarão nos eixos, porque “eixo” passa a ser um conceito abstrato, uma utopia que desejei tão arduamente assim que meu filho nasceu, e que se mostrou, hoje sei, sobrestimado. E só agora, um ano após o nascimento dele e a minha morte, pude entender que não tem problema. Em vez de ter agora uma barra firme que sustenta e dá solidez à nossa vida, todos os pontos ligados e caminhando em uníssono e em Movimento Rentílineo Uniforme para frente, terei de aprender a caminhar agarrando nas outras peças, fazendo nascer novos braços e novas pernas, tropeçando e me embolando sem nunca poder cair. Às vezes voltando, às vezes saltando precipícios, sempre com um gelado cortante no estômago e um sorriso de fachada na cara. Sorrindo porque, agora sei, não dá para ser diferente. O eixo não é tão legal assim. Ele dá uma certa paz, uma tranquilidade, é verdade. Mas com ele também parece que a vida quase pára. O que eu gostava do eixo não era quando a vida quase parava, mas era saber que ela podia quase parar e nenhum desastre aconteceria. Agora, ao contrário, vivo com medo do freio. Quando as coisas param é quando estou paralisada. Paralisia é pânico, desespero, horror. Hoje em dia, se parei é porque deu merda mesmo e preciso muito, muito de ajuda.
Claro que tem dias que quero que pare, confesso. Tenho vontade, por exemplo, de ficar doente, bem resfriada mesmo, e poder passar três dias de cama, olhos fechados ou semi-abertos num livro leve, sem comida decente em casa porque não quis fazer supermercado e, fazer o quê?, vou viver de misto-quente por uns dias. Quem não queria parar no tempo alguns dias para ter o direito de choramingar pelos cantos, reclamar que tudo dói, e ser mimada pelo marido que não precisa cuidar de mais ninguém a não ser você?
Mas agora, my friends, acabou a mamata. Ficar doente com tudo o que a doença oferece de bônus: não, nunca, jamais. Agora, se você ficou doente, se vira, se rala, dá um jeito, dá uns pulos. Depois que se tem filhos, não existe a menor possibilidade de ruminar o resfriado, curtir uma doencinha, um mimo, um estilo trash de adoecer. Os filhos continuam tão carentes de atenção (talvez mais, quase certo que mais) quanto antes, a comida precisa continuar saindo, quentinha, saudável e balançeada, preferivelmente orgânica e localmente produzida, na hora certa. E tem a cereja do bolo, né, minha gente? Sempre tem: Não vou por isso, ou por qualquer outro esforço, mesmo doente, mesmo chorando, mesmo morrendo, ouvir sequer um “obrigado, mamãe”. Aqui, muitas vezes, o que ganho é um “yuck!” se o prato estiver predominantemente verde. Tivesse eu quatro mãos, duas viriam segurando o prato, duas andariam tapando os ouvidos, para evitar a frustração de tanto trabalho para um reconhecimento nulo - ou, com maior probabilidade, negativo.
Outros dias, fico dividida sobre minha escolha para a vida. Vendo o perfil de um amigo casado e sem filhos (porque assim decidiu), senti um pouco de inveja. Ele viajando com a mulher pro Egito. Ele na praia num fim de semana qualquer, com um sorriso que já estava lá, naquele rosto, antes de tirarem a foto. Ele no show dos Los Hermanos com os bródi. Ele na ciclovia carregando apenas uma garrafinha d’água. Ele passando perrengue na estrada sem criança ensurdecendo e inospitalizando o ambiente. Ele, agora triatleta. Ele, agora aprendendo a tocar cello. Ele, com o rosto descansado no selfie matinal de segunda-feira no trabalho. Ele, postando vídeos engraçados de animais porque tem tempo para isso. Ele, com o mesmo peso, as mesmas linhas de expressão, o mesmo número de cabelos brancos de dez anos atrás. Provavelmente a mesma barriga-tanquinho também. Penso na minha barriga e lembro do tobogã do Playcenter e dou uma risada daquelas de porquinho, um tanto triste mas conformada. Me olho no espelho e vejo que, do alto de meus 30 e muitos anos, estou prestes a completar 60. Pra mim, a terceira idade está ali na esquina. Para ele, a uma eternidade.
Ou é isso o que ele quer que eu pense? Como será que funciona uma pessoa que resolveu fazer a escolha consciente de não ter filhos? Está cem porcento satisfeita com a decisão? Quando vê fotos de família Doriana no Facebook, sente essa invejinha não tão branca que eu, bastante envergonhada, sinto? E o que têm essas pessoas a dizer sobre o eixo? Elas sabem que o que é? Sequer percebem sua existência? Ou só percebe quem já o viu implodir e curte seu luto, como eu, como qualquer um que resolveu ter filhos?
Esses pensamentos todos que desconfio ser um tanto confusos se um dia eu for reler, nada mais são do que o resultado de uma cabeça sobrecarregada por ter voltado a trabalhar sem deixar nenhum outro prato cair. A saber, entre os pratos incluem-se, além do trabalho: filho, comida, casa limpa, marido, compras, roupa lavada, seca, dobrada. Ah! E lembrar que tem que ter tempo para si, também, só para eu ficar ainda mais atrapalhada. Dá um jeito de fazer ioga enquanto o arroz queima na panela! Faça natação enquanto a criança assiste, aos prantos! Medite enquanto a caixa dos gatos continua acumulando dias e dias de excrementos. Quando, meu bom jesus, vou conseguir de novo na vida ter tempo para mim?
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Nota mental: Lembrar de sorrir por dentro, também, quando conseguir enganar a todos de que tudo está bem e sob controle: assim tentando enganar a si, com alguma chance de se convencer.