segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Sobre o eixo

(texto ainda pendendo revisão - eu tava bem louca na época, tinha acabado de voltar a trabalhar depois do nascimento do Leo.)

À medida que o tempo passa, fica mais claro: nunca as coisas entrarão nos eixos, porque “eixo” passa a ser um conceito abstrato, uma utopia que desejei tão arduamente assim que meu filho nasceu, e que se mostrou, hoje sei, sobrestimado. E só agora, um ano após o nascimento dele e a minha morte, pude entender que não tem problema. Em vez de ter agora uma barra firme que sustenta e dá solidez à nossa vida, todos os pontos ligados e caminhando em uníssono e em Movimento Rentílineo Uniforme para frente, terei de aprender a caminhar agarrando nas outras peças, fazendo nascer novos braços e novas pernas, tropeçando e me embolando sem nunca poder cair. Às vezes voltando, às vezes saltando precipícios, sempre com um gelado cortante no estômago e um sorriso de fachada na cara. Sorrindo porque, agora sei, não dá para ser diferente. O eixo não é tão legal assim. Ele dá uma certa paz, uma tranquilidade, é verdade. Mas com ele também parece que a vida quase pára. O que eu gostava do eixo não era quando a vida quase parava, mas era saber que ela podia quase parar e nenhum desastre aconteceria. Agora, ao contrário, vivo com medo do freio. Quando as coisas param é quando estou paralisada. Paralisia é pânico, desespero, horror. Hoje em dia, se parei é porque deu merda mesmo e preciso muito, muito de ajuda.

Claro que tem dias que quero que pare, confesso. Tenho vontade, por exemplo, de ficar doente, bem resfriada mesmo, e poder passar três dias de cama, olhos fechados ou semi-abertos num livro leve, sem comida decente em casa porque não quis fazer supermercado e, fazer o quê?, vou viver de misto-quente por uns dias. Quem não queria parar no tempo alguns dias para ter o direito de choramingar pelos cantos, reclamar que tudo dói, e ser mimada pelo marido que não precisa cuidar de mais ninguém a não ser você? 

Mas agora, my friends, acabou a mamata. Ficar doente com tudo o que a doença oferece de bônus: não, nunca, jamais. Agora, se você ficou doente, se vira, se rala, dá um jeito, dá uns pulos. Depois que se tem filhos, não existe a menor possibilidade de ruminar o resfriado, curtir uma doencinha, um mimo, um estilo trash de adoecer. Os filhos continuam tão carentes de atenção (talvez mais, quase certo que mais) quanto antes, a comida precisa continuar saindo, quentinha, saudável e balançeada, preferivelmente orgânica e localmente produzida, na hora certa. E tem a cereja do bolo, né, minha gente? Sempre tem: Não vou por isso, ou por qualquer outro esforço, mesmo doente, mesmo chorando, mesmo morrendo, ouvir sequer um “obrigado, mamãe”. Aqui, muitas vezes, o que ganho é um “yuck!” se o prato estiver predominantemente verde. Tivesse eu quatro mãos, duas viriam segurando o prato, duas andariam tapando os ouvidos, para evitar a frustração de tanto trabalho para um reconhecimento nulo - ou, com maior probabilidade, negativo. 

Outros dias, fico dividida sobre minha escolha para a vida. Vendo o perfil de um amigo casado e sem filhos (porque assim decidiu), senti um pouco de inveja. Ele viajando com a mulher pro Egito. Ele na praia num fim de semana qualquer, com um sorriso que já estava lá, naquele rosto, antes de tirarem a foto. Ele no show dos Los Hermanos com os bródi. Ele na ciclovia carregando apenas uma garrafinha d’água. Ele passando perrengue na estrada sem criança ensurdecendo e inospitalizando o ambiente. Ele, agora triatleta. Ele, agora aprendendo a tocar cello. Ele, com o rosto descansado no selfie matinal de segunda-feira no trabalho. Ele, postando vídeos engraçados de animais porque tem tempo para isso. Ele, com o mesmo peso, as mesmas linhas de expressão, o mesmo número de cabelos brancos de dez anos atrás. Provavelmente a mesma barriga-tanquinho também. Penso na minha barriga e lembro do tobogã do Playcenter e dou uma risada daquelas de porquinho, um tanto triste mas conformada. Me olho no espelho e vejo que, do alto de meus 30 e muitos anos, estou prestes a completar 60. Pra mim, a terceira idade está ali na esquina. Para ele, a uma eternidade.

Ou é isso o que ele quer que eu pense? Como será que funciona uma pessoa que resolveu fazer a escolha consciente de não ter filhos? Está cem porcento satisfeita com a decisão? Quando vê fotos de família Doriana no Facebook, sente essa invejinha não tão branca que eu, bastante envergonhada, sinto? E o que têm essas pessoas a dizer sobre o eixo? Elas sabem que o que é? Sequer percebem sua existência? Ou só percebe quem já o viu implodir e curte seu luto, como eu, como qualquer um que resolveu ter filhos? 

Esses pensamentos todos que desconfio ser um tanto confusos se um dia eu for reler, nada mais são do que o resultado de uma cabeça sobrecarregada por ter voltado a trabalhar sem deixar nenhum outro prato cair. A saber, entre os pratos incluem-se, além do trabalho: filho, comida, casa limpa, marido, compras, roupa lavada, seca, dobrada. Ah! E lembrar que tem que ter tempo para si, também, só para eu ficar ainda mais atrapalhada. Dá um jeito de fazer ioga enquanto o arroz queima na panela! Faça natação enquanto a criança assiste, aos prantos! Medite enquanto a caixa dos gatos continua acumulando dias e dias de excrementos. Quando, meu bom jesus, vou conseguir de novo na vida ter tempo para mim?

*

        Nota mental: Lembrar de sorrir por dentro, também, quando conseguir enganar a todos de que tudo está bem e sob controle: assim tentando enganar a si, com alguma chance de se convencer.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Sobre achados e perdidos

Amados filhos,

Não sei com que idade vão descobrir de verdade que mamãe é humana, que falha (e muito), que tem problemas, alguns químicos, alguns mal resolvidos, alguns crônicos com picos agudos, agudíssimos. Dolorosamente agudos. Talvez Catu, com apenas dois aninhos, seja pequena demais para lembrar de qualquer coisa, mas Leo, com quase 6 anos, talvez tenha vivido ontem uma de suas primeiras memórias, dessas que carregamos para a vida adulta.

Lembro que uma de minhas primeiras memórias foi aos 4 ou 5 anos, meus pais brigavam na sala do nosso apartamento no décimo oitavo andar na Rua Pedroso Alvarenga. Gritavam um com o outro, xingavam-se. Na frente de sua tia, então com 6 anos, e de mim. Como se não existíssemos. Choramos desesperadas de medo, e não adiantou. Como se fôssemos mudas, como se fossem surdos. Jamais saberemos o que houve - de algumas coisas os filhos devem ser poupados para toda a eternidade -, mas a imagem, mais de 30 anos depois, continua nítida. Eu sentada no sofá com minha irmã, chorando, meu pai transfigurado gritando impropérios a minha mãe, que também chorava, e retrucava, numa voz de choro que desconhecíamos. Quem eram aqueles dois adultos? Onde estavam os nossos pais? Não lembro como a história se desenrolou. Eventualmente as coisas se acertaram. Seus avós, na época, devem ter se sentido muito culpados depois do episódio. Hoje, nem devem lembrar. Naquele tempo, eu não entendia como podiam meus heróis, meus pilares, as únicas pessoas que realmente importavam na minha vida, ser tão falhos.

Ontem eu falhei. Falhei como mãe. Falhei na minha tentativa de tentar poupar vocês o máximo possível durante esse período difícil que estou passando. Depressão é uma companheira muito inconveniente: ocupa a cabeça, os sentimentos, os sentidos, as reações. Tudo o que se faz é lutar pelo libertar-se do sofrimento, todo o resto vira secundário. Ontem eu estava lutando, e vocês foram pegos no meio da batalha, por terem sido, juntos, na dinâmica de irmãos, justamente o elemento que me fez explodir. Leo provoca, Catu grita; Leo provoca, Catu grita; Leo provoca, Catu grita. On and on and on. Sempre tentei não me meter nas intrigas bestas entre vocês na vã tentativa de que, se percebessem que não ganhavam minha atenção, eventualmente desistiriam das picuinhas. Ilusão de mãe. Ontem, depois de pedir trocentas vezes para pararem de gritar, resolvi me trancar na cozinha. O foco da gritaria mudou. Agora não gritavam um com o outro, e sim para que eu abrisse a porta. Alguns minutos depois abri a porta. Expliquei porque tinha me fechado a chave, que precisavam parar com a briga constante. Vocês pareceram entender, mas são ainda muito imaturos para conseguir se controlar, e alguns minutos mais tarde, a dinâmica recomeçou. Dessa vez não esperei explodir e gritar com vocês. Eu estava exausta, já estava chorando, paralisada, desesperada em não saber mais o que fazer para que parassem com aquela tortura. Aos prantos, me fechei na cozinha. Não sei dizer quanto tempo se passou. Me debrucei na pia e abri a torneira para neutralizar os gritos que vocês soltavam, esmurrando a porta, mas não adiantou: ouvi tudo. Os primeiros pedidos para eu abrir a porta, depois as implorações, por fim, choro, muito choro de vocês dois, e as vozes em uníssono que não vão me sair da memória: "Eu tô com medo mamãe, abre a porta!"

E eu não abri.

Não conseguia me mexer. Queria poupá-los da minha fraqueza, de me verem moída, completamente entregue à minha tormenta. Mas de alguma forma parece que vocês sentiram minha distância, sentiram que me esvaia pelo ralo, sentiram como eu lhes escapava, como dançava rumo à escuridão. Vi claramente quando pararam de gritar e, mudos de medo, se fecharam os dois no banheiro à espera de algo que viesse os salvar, já descrentes de que a mamãe fosse ouvi-los. Pararam de gritar quando o medo foi tão grande que se uniram e se abraçaram, no menor dos cômodos. Foi só então que destranquei a porta da cozinha e abri a do banheiro. Quatro olhinhos assustados e chorosos me olhavam, traídos, machucados. Todo mundo machucado.

Sentei no sofá. Catu correu aos soluços para meu colo. Leo sentou com bico embaixo da escrivaninha, se escondendo num lugar em que fosse fácil de me manter à vista. Ficamos em silêncio, apenas os soluços, meus e de Catu. Meus pensamentos quase gritando: "chega logo, Alexandre". Quando o papai chegou, as coisas melhoraram um pouco. Leo, ainda chateado, foi para seu quarto ficar um pouco sozinho. Catu continuava no meu colo. Alê me liberou para ir descansar, tomar um banho de banheira, ler. Mas agora era eu quem não queria ir. Estava me sentindo culpada. Queria que soubessem que são as pessoas mais importantes na minha vida, pessoas que me seguram aqui, meus pilares também. Sozinha é que é perigoso. É quando estou sozinha que deixo a lama entrar.

Mas fui. Tomei banho de banheira, li um pouco, vi as fotos que havia tirado no dia, numa hora boa, em que jamais imaginaria o meltdown que se seguiria horas mais tarde.

Estava exausta, mas fiquei com os dois antes de dormirem. Primeiro deitei com a Catu, que não havia tirado a soneca da tarde, e fiz carinho em suas costas até que caísse no sono. Depois deitei ao lado do Leo e conversamos sobre o que havia acontecido - na verdade eu falei e você, filho, ouviu. Depois apenas disse "you don't have to apologize, mommy" e logo mudou de assunto.

No meio da noite, Catu, você acordou aos prantos: "eu tô com medo! eu tô com medo!" Te deitei ao meu lado e te encapsulei nos meus braços, o mais próximo que eu conseguiria de te fazer voltar pro meu útero. Mas não adiantou. Você continuou gritando. Não tinha dor física, não tinha febre, não tinha sede. Era apenas uma profunda angústia, talvez de perceber a mundanidade de sua mamãe, e sua incapacidade de fazer toda dor passar. Continuou gritando e chorando, com todas as forças, arqueando as costas, entregue a seu desespero. Não queria mais ser abraçada, mas começou a mudar o discurso. "Tô com medo! Tô com 'mebe'! Tô com febre". E eu disse que não, não estava com febre. E você, aturdida, exclamou: "então por que eu tô chorando?"

A sensação era de um punhal entrando, cavando, explorando todos os cantos do meu coração. Como pude esquecer, no meio da minha loucura, que eram duas crianças pequenas? Como pude deixá-las com medo, trancadas para fora da cozinha, sem acesso ao único adulto que estava em casa? Como pude não conseguir me controlar? Me importar mais com o que se passava comigo do que com o que se passava com vocês.

Minha falha. Minha grande e humana falha, meus filhos. Odeio ver o que esse episódio todo causou em vocês. O olhar melancólico de Leo hoje de manhã, pensativo no sofá, certamente revivendo o episódio em sua cabeça. O desespero noturno de Catu que lhe (nos) custou horas de sono.

No entanto, talvez papai tenha razão: vocês precisam entender que ninguém aguenta tanta gritaria o tempo todo. Precisam conhecer a consequência do que vocês mesmos causaram para assim aprenderem a corrigir seus caminhos e evitarem cair no mesmo beco.

Ou, sei lá, não vão jamais lembrar do que se passou, nem lendo essas palavras anos e anos mais tarde.  Torço por isso. Eu mesma, daqui a algum tempo, lerei com olhos mais enrugados, a cabeça mais branca, e uma doçura no olhar, aquela doçura dos sobreviventes.

sábado, 1 de dezembro de 2018

viagem de ida e volta

O trecho seria curto e não havia nada de muito ruim que pudesse acontecer. Mesmo assim, achou prudente levar um guarda-chuva, uma sacola dobrada dentro da bolsa, dinheiro, telefone, chave, lenços secos e umedecidos. Mesmo sabendo que não usaria. Porque já aconteceu de precisar de uma dessas coisas todas e ter de enfrentar um grande problema, que em si tinha solução mas que gerava uma inquietude tão grande, um arfar e um palpitar e um redemoinho mental que era, isso sim, o pior que podia acontecer. Também tinha a possibilidade, embora remota, de encontrar alguém na rua que precisasse de sua ajuda com um desses ítens. Talvez até com um item que não estivesse na bolsa, e  neste caso sabia que precisaria aumentar a lista de objetos a levar consigo numa próxima vez. Quando alcançou a farmácia, ainda pensava se tinha mesmo conseguido trazer tudo. Para a volta podia comprar algo na farmácia mesmo - pensou no kit de primeiros socorros, mas era grande demais para sua bolsa, também grande mas já cheia de coisas. Pensou numa segunda bolsa, mas logo esqueceu porque havia chegado.

Entrou na fila com a prescrição amassada nas mãos trêmulas e enrugadas, perfeitamente manicuradas. Esperou, esperou, com a mão ao ar, pronta para esticar o papel no segundo seguinte, embora ainda houvesse três pessoas a sua frente. Respirava com o peito, a boca aberta. O jovem da frente lhe cedeu espaço, mais para livrar-se do hálito em seu pescoço do que por gentileza. Ela agradeceu secamente, afinal, não fez mais que a obrigação, o rapazote. Soubesse ela do poder de seu hálito, usaria-o com mais afinco para lhe cederem o lugar.

Chegou sua vez, foi atendida por uma jovem mulata, o cabelo bem preso, alisado contra a cabeça. Os dentes tão brancos que incomodavam, o sorriso congelado no rosto, escancarando sua higiene bucal e a alegria sem fim dos ignorantes. Uma maquiagem barata que mais ressaltava do que escondia a pele cheia de espinhas e buracos por elas deixados. Demorou para assimilar tanta informação. A moça perguntou novamente, mais alto, mais pausadamente. Senhora, em que posso ajudarrrr? Puxou o R como fazem as pessoas da periferia. Notara que cada vez mais encontrava pessoas que falavam assim, e isso a desagradava por algum motivo que nunca pensou em questionar.

Boa tarde. Por gentileza. Esticou secamente a prescrição. Memantina, Risperidona, Alprazolam. Vai levar todos? Gritou a atendente, o sorriso ainda lá. A senhora sentiu o corpo gelar antes de esquentar como se de seu estômago nascesse em um só tempo um vulcão e sua erupção em lava. Poderia falar mais alto para que o pessoal da farmácia seguinte também escute? A atendente desfez apenas um pouco o sorriso, depois o esticou ainda mais. Desculpe, senhora. Já tem cadastro conosco? 

Recitou seu CPF como se ditasse a um aluno na pré-escola. Olhou para os lados, as outras pessoas na fila não tinham anotado, ela teria percebido. Pegou os remédios sem entender por que os farmacêuticos sempre os punham dentro de um envelope plástico que, chegando no caixa, seria novamente guardado para uso futuro. Qual o sentido daquela bolsinha?  O que ele evita? É regra da Anvisa? Ou é pra evitar roubo de mim para mim mesma? Eis uma pergunta que há décadas vem tentando responder. Chegou a mandar carta para a Reader's Digest para ver se respondiam, mas nunca obteve retorno.

Contrariada, estala a língua nos dentes e segue para a seção de fraldas geriátricas. Rapidamente alcança a marca e o tamanho que costuma usar. Avista os kit de primeiros socorros, demora-se vendo preços, tamanhos, conteúdo. Lembra que aquela segunda bolsa talvez seja mesmo necessária. Segue para o caixa, os passos rápidos e curtos, quando vê a atendente olhando furtivamente para o caixa, o riso contido, depois de jogar a cabeça em sua direção, como quem diz: lá vem a véia, lá vem a louca, lá vem encrenca.

Em sua mente, está com uma postura muito ereta e muita digna. Chega ao caixa e entrega-lhe sua cesta. Com voz baixa e mão protegendo a boca de olhares laterais, confidencia: não gosto daquela menina. Não fala direito e não tem dentes de verdade. Alisa o cabelo, pinta demais a cara e revela nossas doenças para quem estiver por perto. Pode avisar o gerente? O caixa concorda com um leve sorriso. Posso sim, senhora. No fundo, todo mundo sabe que nada vai acontecer, porque a velha é uma louca, porque não é a primeira e nem a última vez que essa exata cena acontece, porque aqueles remédios todos sabem para o que é.

Depois de pagar, pega sua compra e sai da farmácia. Olha ao redor e lembra, de fato, que esqueceu algo. Algo importante que agora lhe faria falta. Começa a arfar, o coração a mil. Sente o chão se abrindo. Entra novamente na farmácia e pergunta se pode se sentar. A atendente odiosamente contente a segura pelo braço e a dirige com cuidado para dentro de uma salinha. O perfume barato nauseando a senhora que, a esta altura, não ligava mais. Só queria voltar para casa. O que posso fazer pela senhora? Diz a mulata pacientemente, puxando o R de fazer. A senhora não consegue responder. Olhos esbugalhados debaixo de uma cortina de rugas, a boca tremendo a espasmos largos e involuntários. A atendente a olha com pena. Segura sua mão, olha para seu pulso, faz algumas anotações e, instantes depois, está ao telefone: Sim, novamente... Aqui, na farmácia de sempre... Está calma, mas precisa de ajuda para voltar para casa. Balbucia sem parar que não sabe ler mapas... Isso, senhora, alguém precisa vir agora... Mas, senhora, é seu nome e seu número no bracelete.

A mulata, Rosane era seu nome, senta-se ao lado da velha sem dizer nada. O sorriso finalmente contido por lábios desacostumados a se encontar. O perfume ainda incomoda, mas a senhora não ousa se pronunciar. Não quer ficar sozinha.

Fingindo não ter ouvido a conversa ao telefone, analisa as unhas manicuradas e pensa que na semana seguinte escolherá um tom mais claro, e dirá para Cibele ter mais cuidado com suas cutículas, aquela apressadinha, ou não ganharia gorjeta. A verdade é que também ruminava sobre o fardo que era para sua filha. Sabia que estaria interrompendo algo importante no trabalho para vir ajudá-la. As reuniões, as metas, os clientes, o chefe, o budget, os custos. Não entendia bem, e não perguntaria de novo - isso só irritaria a filha. Pensou que, quando chegasse em casa, poderia lhe oferecer um chá indiano com sequilhos e, de repente, ela até aceitaria ficar o resto da tarde ali, conversando até a hora do jantar. Podia inventar qualquer desculpa no trabalho, o que poderia ser mais importante que família? Adoraria contar pela vigésima vez à filha como era querida por seus alunos de Filosofia, e aquela vez que lhe trouxeram um bolo surpresa com uma citação de Nietzsche: "É necessário ter o caos cá dentro para gerar uma estrela." Ou teria sido "gerir"? Não se lembrava mais. Enquanto esperava a filha, para ocupar as mãos e os olhos, verificou todos os ítens de sua bolsa e releu as caixas de seus medicamentos. Estava tudo bem, tudo certo. Pausou entre uma atividade e outra para urinar na fralda. Depois, seguiu esperando.

Isso não é um poema

Esses dias tive um alumbramento.  Entendi tudo.  A história de dormir humano e acordar  borboleta E dormir borboleta e acordar  humano....