sábado, 1 de dezembro de 2018

viagem de ida e volta

O trecho seria curto e não havia nada de muito ruim que pudesse acontecer. Mesmo assim, achou prudente levar um guarda-chuva, uma sacola dobrada dentro da bolsa, dinheiro, telefone, chave, lenços secos e umedecidos. Mesmo sabendo que não usaria. Porque já aconteceu de precisar de uma dessas coisas todas e ter de enfrentar um grande problema, que em si tinha solução mas que gerava uma inquietude tão grande, um arfar e um palpitar e um redemoinho mental que era, isso sim, o pior que podia acontecer. Também tinha a possibilidade, embora remota, de encontrar alguém na rua que precisasse de sua ajuda com um desses ítens. Talvez até com um item que não estivesse na bolsa, e  neste caso sabia que precisaria aumentar a lista de objetos a levar consigo numa próxima vez. Quando alcançou a farmácia, ainda pensava se tinha mesmo conseguido trazer tudo. Para a volta podia comprar algo na farmácia mesmo - pensou no kit de primeiros socorros, mas era grande demais para sua bolsa, também grande mas já cheia de coisas. Pensou numa segunda bolsa, mas logo esqueceu porque havia chegado.

Entrou na fila com a prescrição amassada nas mãos trêmulas e enrugadas, perfeitamente manicuradas. Esperou, esperou, com a mão ao ar, pronta para esticar o papel no segundo seguinte, embora ainda houvesse três pessoas a sua frente. Respirava com o peito, a boca aberta. O jovem da frente lhe cedeu espaço, mais para livrar-se do hálito em seu pescoço do que por gentileza. Ela agradeceu secamente, afinal, não fez mais que a obrigação, o rapazote. Soubesse ela do poder de seu hálito, usaria-o com mais afinco para lhe cederem o lugar.

Chegou sua vez, foi atendida por uma jovem mulata, o cabelo bem preso, alisado contra a cabeça. Os dentes tão brancos que incomodavam, o sorriso congelado no rosto, escancarando sua higiene bucal e a alegria sem fim dos ignorantes. Uma maquiagem barata que mais ressaltava do que escondia a pele cheia de espinhas e buracos por elas deixados. Demorou para assimilar tanta informação. A moça perguntou novamente, mais alto, mais pausadamente. Senhora, em que posso ajudarrrr? Puxou o R como fazem as pessoas da periferia. Notara que cada vez mais encontrava pessoas que falavam assim, e isso a desagradava por algum motivo que nunca pensou em questionar.

Boa tarde. Por gentileza. Esticou secamente a prescrição. Memantina, Risperidona, Alprazolam. Vai levar todos? Gritou a atendente, o sorriso ainda lá. A senhora sentiu o corpo gelar antes de esquentar como se de seu estômago nascesse em um só tempo um vulcão e sua erupção em lava. Poderia falar mais alto para que o pessoal da farmácia seguinte também escute? A atendente desfez apenas um pouco o sorriso, depois o esticou ainda mais. Desculpe, senhora. Já tem cadastro conosco? 

Recitou seu CPF como se ditasse a um aluno na pré-escola. Olhou para os lados, as outras pessoas na fila não tinham anotado, ela teria percebido. Pegou os remédios sem entender por que os farmacêuticos sempre os punham dentro de um envelope plástico que, chegando no caixa, seria novamente guardado para uso futuro. Qual o sentido daquela bolsinha?  O que ele evita? É regra da Anvisa? Ou é pra evitar roubo de mim para mim mesma? Eis uma pergunta que há décadas vem tentando responder. Chegou a mandar carta para a Reader's Digest para ver se respondiam, mas nunca obteve retorno.

Contrariada, estala a língua nos dentes e segue para a seção de fraldas geriátricas. Rapidamente alcança a marca e o tamanho que costuma usar. Avista os kit de primeiros socorros, demora-se vendo preços, tamanhos, conteúdo. Lembra que aquela segunda bolsa talvez seja mesmo necessária. Segue para o caixa, os passos rápidos e curtos, quando vê a atendente olhando furtivamente para o caixa, o riso contido, depois de jogar a cabeça em sua direção, como quem diz: lá vem a véia, lá vem a louca, lá vem encrenca.

Em sua mente, está com uma postura muito ereta e muita digna. Chega ao caixa e entrega-lhe sua cesta. Com voz baixa e mão protegendo a boca de olhares laterais, confidencia: não gosto daquela menina. Não fala direito e não tem dentes de verdade. Alisa o cabelo, pinta demais a cara e revela nossas doenças para quem estiver por perto. Pode avisar o gerente? O caixa concorda com um leve sorriso. Posso sim, senhora. No fundo, todo mundo sabe que nada vai acontecer, porque a velha é uma louca, porque não é a primeira e nem a última vez que essa exata cena acontece, porque aqueles remédios todos sabem para o que é.

Depois de pagar, pega sua compra e sai da farmácia. Olha ao redor e lembra, de fato, que esqueceu algo. Algo importante que agora lhe faria falta. Começa a arfar, o coração a mil. Sente o chão se abrindo. Entra novamente na farmácia e pergunta se pode se sentar. A atendente odiosamente contente a segura pelo braço e a dirige com cuidado para dentro de uma salinha. O perfume barato nauseando a senhora que, a esta altura, não ligava mais. Só queria voltar para casa. O que posso fazer pela senhora? Diz a mulata pacientemente, puxando o R de fazer. A senhora não consegue responder. Olhos esbugalhados debaixo de uma cortina de rugas, a boca tremendo a espasmos largos e involuntários. A atendente a olha com pena. Segura sua mão, olha para seu pulso, faz algumas anotações e, instantes depois, está ao telefone: Sim, novamente... Aqui, na farmácia de sempre... Está calma, mas precisa de ajuda para voltar para casa. Balbucia sem parar que não sabe ler mapas... Isso, senhora, alguém precisa vir agora... Mas, senhora, é seu nome e seu número no bracelete.

A mulata, Rosane era seu nome, senta-se ao lado da velha sem dizer nada. O sorriso finalmente contido por lábios desacostumados a se encontar. O perfume ainda incomoda, mas a senhora não ousa se pronunciar. Não quer ficar sozinha.

Fingindo não ter ouvido a conversa ao telefone, analisa as unhas manicuradas e pensa que na semana seguinte escolherá um tom mais claro, e dirá para Cibele ter mais cuidado com suas cutículas, aquela apressadinha, ou não ganharia gorjeta. A verdade é que também ruminava sobre o fardo que era para sua filha. Sabia que estaria interrompendo algo importante no trabalho para vir ajudá-la. As reuniões, as metas, os clientes, o chefe, o budget, os custos. Não entendia bem, e não perguntaria de novo - isso só irritaria a filha. Pensou que, quando chegasse em casa, poderia lhe oferecer um chá indiano com sequilhos e, de repente, ela até aceitaria ficar o resto da tarde ali, conversando até a hora do jantar. Podia inventar qualquer desculpa no trabalho, o que poderia ser mais importante que família? Adoraria contar pela vigésima vez à filha como era querida por seus alunos de Filosofia, e aquela vez que lhe trouxeram um bolo surpresa com uma citação de Nietzsche: "É necessário ter o caos cá dentro para gerar uma estrela." Ou teria sido "gerir"? Não se lembrava mais. Enquanto esperava a filha, para ocupar as mãos e os olhos, verificou todos os ítens de sua bolsa e releu as caixas de seus medicamentos. Estava tudo bem, tudo certo. Pausou entre uma atividade e outra para urinar na fralda. Depois, seguiu esperando.

4 comentários:

  1. Muito bom. Vc escreve de forma visceral. Meu orgulho

    ResponderExcluir
  2. Excelente texto, minha irmã. Fluído, prende atenção. Adoro o quanto posso rir e ficar angustiada com teu texto, às vezes na mesma linha. Meu orgulho tb. Louca pra ler o próximo...
    Jo

    ResponderExcluir
  3. Muito bom, Bia. Adorei ler seus textos. Espero ansiosa pelo próximo!
    Sonia Bidutte

    ResponderExcluir
  4. Adorei, Bia! Você descreve as situações com tal colorido e riqueza que vemos as personagens na nossa frente, sentimos sua náusea, nos solidarizamos com ela. Ficou a vontade de mais. Parabéns!!!

    ResponderExcluir

Isso não é um poema

Esses dias tive um alumbramento.  Entendi tudo.  A história de dormir humano e acordar  borboleta E dormir borboleta e acordar  humano....