segunda-feira, 13 de julho de 2020

mãos doadas

A vontade era de meter as mãos nos bolsos, mas precisava dá-las a sua filha, já com sete anos mas ainda tão apegada, e a seu filho, que queria porque a irmã queria. O caminho para escola não era longo, nem desagradável. Mas, para si ela podia confessar, parecia o contrário quando se é a Pessoa Responsável. O bebê já estava na creche, os seios agulhando e o coração apertado como de costume, após um choro sincero de fim do mundo, entregue, escancarado, de que só os bebês são capazes, o choro da separação e do que para eles, de fato, é o fim do mundo.

Todas as manhãs eram iguais. Filha que não quer acordar, filho que não quer se vestir, bebê que não quer sossegar, marido que não quer ajudar. E eu, que não queria ser quem sou durante aquela primeira hora. E todas as manhãs são indícios de um dia duro pela frente, mas ainda assim um dia útil, com cada coisa previsivelmente organizada em pequenos caos. Caixinhas de surpresa paradoxalmente transparentes, carregando dentro de si uma pequena luta a ser enfrentada, um esforço violento contra a inércia a que todos os dias desejo sucumbir.

Chegando na escola, o primeiro grande alívio do dia. As crianças entregues a tempo. A leveza de andar com as mãos nos bolsos. O fone de ouvido criando a bolha que o trem lotado estouraria. Uma hora e meia até o próximo caos. Usei esse tempo para ouvir músicas que me entristecessem um pouco: a ideia é deixar que coisas de fora me entristeçam para eu parar de pensar na tristeza de dentro.

Não consigo lembrar exatamente quando percebi que estava fugindo todos os dias, mas como não sabia e nem tinha interesse suficiente para fazer diferente, estava fadada a repeti-los para sempre. A ideia é desesperadora. Todos os dias acordar fugindo da próxima hora, todas as noites me deitar armada para começar de novo. Mas pelo menos cada dia começava e acabava como o anterior. Sem grandes surpresas, sem evoluções, sem revoluções. Sozinha, tentando me libertar da massa negra que me tensiona os ombros e me faz olhar pela janela sem conseguir chorar, como deveria.

Depois o alívio de sair do trem. Já com cheiro de mundo, ando com as mãos nos bolsos até chegar ao trabalho. Cinco minutos adiantada como de costume, espero. Toco a campainha e ouço Theo gritando meu nome. Sua mãe abre a porta e, enquanto ele se enrosca em minha perna, rapidamente me atualiza: "febre essa noite.... almoço vai ser batata doce e carne moída... feijão de molho por favor... lição de casa da Alice... sem natação hoje, claro... não esquecer de pendurar a roupa... se der tempo, passar... mas o Theo, ele é o que importa. O resto pode esperar. Tchau, estou saindo, até mais tarde."

Theo que importa, e Alice, claro. Todo o resto pode esperar, ok? São eles que importam. Todos os dias a mesma ladainha. Entendo. Eu também acho que meus filhos são tudo quando estão longe. Minhas próximas horas, eu sabia, seriam com os pequenos desesperos dela, estranhamente mais toleráveis.

O dia passa, bom e ruim. Nenhuma surpresa. Escurece e parto. Aproveito as poucas horas que ainda terei para meter as mãos nos bolsos, até não ter escolha a não ser esquentar as mãos dos meus. 

Um dia uma desconhecida me perguntou, com um recém-nascido no colo e os olhos embargados e suplicantes, se eu me arrependia de ter filhos. Não precisei pensar muito. Fiz que sim com a cabeça, mas não quis chorar. Já tinha ruminado muito o assunto, já tinha me culpado e desculpado. Sabia a diferença entre esse arrependimento e o amor aos meus filhos. Sabia também que seria minha cruz para sempre. Então sei que esquentar-lhes as mãos, afinal, é o mínimo que posso fazer. Um lembrete, dentre tantos o dia todo, todos os dias.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Isso não é um poema

Esses dias tive um alumbramento.  Entendi tudo.  A história de dormir humano e acordar  borboleta E dormir borboleta e acordar  humano....