Amados filhos,
Não sei com que idade vão descobrir de verdade que mamãe é humana, que falha (e muito), que tem problemas, alguns químicos, alguns mal resolvidos, alguns crônicos com picos agudos, agudíssimos. Dolorosamente agudos. Talvez Catu, com apenas dois aninhos, seja pequena demais para lembrar de qualquer coisa, mas Leo, com quase 6 anos, talvez tenha vivido ontem uma de suas primeiras memórias, dessas que carregamos para a vida adulta.
Lembro que uma de minhas primeiras memórias foi aos 4 ou 5 anos, meus pais brigavam na sala do nosso apartamento no décimo oitavo andar na Rua Pedroso Alvarenga. Gritavam um com o outro, xingavam-se. Na frente de sua tia, então com 6 anos, e de mim. Como se não existíssemos. Choramos desesperadas de medo, e não adiantou. Como se fôssemos mudas, como se fossem surdos. Jamais saberemos o que houve - de algumas coisas os filhos devem ser poupados para toda a eternidade -, mas a imagem, mais de 30 anos depois, continua nítida. Eu sentada no sofá com minha irmã, chorando, meu pai transfigurado gritando impropérios a minha mãe, que também chorava, e retrucava, numa voz de choro que desconhecíamos. Quem eram aqueles dois adultos? Onde estavam os nossos pais? Não lembro como a história se desenrolou. Eventualmente as coisas se acertaram. Seus avós, na época, devem ter se sentido muito culpados depois do episódio. Hoje, nem devem lembrar. Naquele tempo, eu não entendia como podiam meus heróis, meus pilares, as únicas pessoas que realmente importavam na minha vida, ser tão falhos.
Ontem eu falhei. Falhei como mãe. Falhei na minha tentativa de tentar poupar vocês o máximo possível durante esse período difícil que estou passando. Depressão é uma companheira muito inconveniente: ocupa a cabeça, os sentimentos, os sentidos, as reações. Tudo o que se faz é lutar pelo libertar-se do sofrimento, todo o resto vira secundário. Ontem eu estava lutando, e vocês foram pegos no meio da batalha, por terem sido, juntos, na dinâmica de irmãos, justamente o elemento que me fez explodir. Leo provoca, Catu grita; Leo provoca, Catu grita; Leo provoca, Catu grita. On and on and on. Sempre tentei não me meter nas intrigas bestas entre vocês na vã tentativa de que, se percebessem que não ganhavam minha atenção, eventualmente desistiriam das picuinhas. Ilusão de mãe. Ontem, depois de pedir trocentas vezes para pararem de gritar, resolvi me trancar na cozinha. O foco da gritaria mudou. Agora não gritavam um com o outro, e sim para que eu abrisse a porta. Alguns minutos depois abri a porta. Expliquei porque tinha me fechado a chave, que precisavam parar com a briga constante. Vocês pareceram entender, mas são ainda muito imaturos para conseguir se controlar, e alguns minutos mais tarde, a dinâmica recomeçou. Dessa vez não esperei explodir e gritar com vocês. Eu estava exausta, já estava chorando, paralisada, desesperada em não saber mais o que fazer para que parassem com aquela tortura. Aos prantos, me fechei na cozinha. Não sei dizer quanto tempo se passou. Me debrucei na pia e abri a torneira para neutralizar os gritos que vocês soltavam, esmurrando a porta, mas não adiantou: ouvi tudo. Os primeiros pedidos para eu abrir a porta, depois as implorações, por fim, choro, muito choro de vocês dois, e as vozes em uníssono que não vão me sair da memória: "Eu tô com medo mamãe, abre a porta!"
E eu não abri.
Não conseguia me mexer. Queria poupá-los da minha fraqueza, de me verem moída, completamente entregue à minha tormenta. Mas de alguma forma parece que vocês sentiram minha distância, sentiram que me esvaia pelo ralo, sentiram como eu lhes escapava, como dançava rumo à escuridão. Vi claramente quando pararam de gritar e, mudos de medo, se fecharam os dois no banheiro à espera de algo que viesse os salvar, já descrentes de que a mamãe fosse ouvi-los. Pararam de gritar quando o medo foi tão grande que se uniram e se abraçaram, no menor dos cômodos. Foi só então que destranquei a porta da cozinha e abri a do banheiro. Quatro olhinhos assustados e chorosos me olhavam, traídos, machucados. Todo mundo machucado.
Sentei no sofá. Catu correu aos soluços para meu colo. Leo sentou com bico embaixo da escrivaninha, se escondendo num lugar em que fosse fácil de me manter à vista. Ficamos em silêncio, apenas os soluços, meus e de Catu. Meus pensamentos quase gritando: "chega logo, Alexandre". Quando o papai chegou, as coisas melhoraram um pouco. Leo, ainda chateado, foi para seu quarto ficar um pouco sozinho. Catu continuava no meu colo. Alê me liberou para ir descansar, tomar um banho de banheira, ler. Mas agora era eu quem não queria ir. Estava me sentindo culpada. Queria que soubessem que são as pessoas mais importantes na minha vida, pessoas que me seguram aqui, meus pilares também. Sozinha é que é perigoso. É quando estou sozinha que deixo a lama entrar.
Mas fui. Tomei banho de banheira, li um pouco, vi as fotos que havia tirado no dia, numa hora boa, em que jamais imaginaria o meltdown que se seguiria horas mais tarde.
Estava exausta, mas fiquei com os dois antes de dormirem. Primeiro deitei com a Catu, que não havia tirado a soneca da tarde, e fiz carinho em suas costas até que caísse no sono. Depois deitei ao lado do Leo e conversamos sobre o que havia acontecido - na verdade eu falei e você, filho, ouviu. Depois apenas disse "you don't have to apologize, mommy" e logo mudou de assunto.
No meio da noite, Catu, você acordou aos prantos: "eu tô com medo! eu tô com medo!" Te deitei ao meu lado e te encapsulei nos meus braços, o mais próximo que eu conseguiria de te fazer voltar pro meu útero. Mas não adiantou. Você continuou gritando. Não tinha dor física, não tinha febre, não tinha sede. Era apenas uma profunda angústia, talvez de perceber a mundanidade de sua mamãe, e sua incapacidade de fazer toda dor passar. Continuou gritando e chorando, com todas as forças, arqueando as costas, entregue a seu desespero. Não queria mais ser abraçada, mas começou a mudar o discurso. "Tô com medo! Tô com 'mebe'! Tô com febre". E eu disse que não, não estava com febre. E você, aturdida, exclamou: "então por que eu tô chorando?"
A sensação era de um punhal entrando, cavando, explorando todos os cantos do meu coração. Como pude esquecer, no meio da minha loucura, que eram duas crianças pequenas? Como pude deixá-las com medo, trancadas para fora da cozinha, sem acesso ao único adulto que estava em casa? Como pude não conseguir me controlar? Me importar mais com o que se passava comigo do que com o que se passava com vocês.
Minha falha. Minha grande e humana falha, meus filhos. Odeio ver o que esse episódio todo causou em vocês. O olhar melancólico de Leo hoje de manhã, pensativo no sofá, certamente revivendo o episódio em sua cabeça. O desespero noturno de Catu que lhe (nos) custou horas de sono.
No entanto, talvez papai tenha razão: vocês precisam entender que ninguém aguenta tanta gritaria o tempo todo. Precisam conhecer a consequência do que vocês mesmos causaram para assim aprenderem a corrigir seus caminhos e evitarem cair no mesmo beco.
Ou, sei lá, não vão jamais lembrar do que se passou, nem lendo essas palavras anos e anos mais tarde. Torço por isso. Eu mesma, daqui a algum tempo, lerei com olhos mais enrugados, a cabeça mais branca, e uma doçura no olhar, aquela doçura dos sobreviventes.
Criações lentas, verdades minhas e de outrem, meus medos mal enterrados, outros medos também, des histoires noires, sobre a sensação de saudade sem felicidade, sobre estar nua e com muita vergonha. Sobre mim, e não.
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Minha filhinha amada.
ResponderExcluirTodas as pessoas têm suas falhas e fraquezas... inclusive as mães.
Peço que me perdoe por te ferir tão profundamente no passado. Peço que se perdoe por seus momentos de fraqueza. Escrevo isso com lágrimas de arrependimento nos olhos e com lágrimas de ternura por você conseguir se conhecer tão bem e se superar a cada dia.
Bibinha, você é uma mãe maravilhosa. Fraquezas e erros ocorrem com todos
em várias situações de nossas vidas.
e sim... é muito difícil superarmos nossas depressões. Mas vc com seu dom da comunicação pela escrita conseguirá superar essas fases de difícil compreensão por quem não passou por isso.
ExcluirTe amo minha filhinha tão forte e tão frágil ao mesmo tempo.
Chorei! Tanto que parei de ler no meio e retomei depois....
ResponderExcluirTambém fiquei profundamente tocada pelo seu relato, Bi. Acho que aprender a perdoar-se também é uma life skill fundamental que você poderá, pelo exemplo, ensinar aos seus pequenos. Isso também passará. ;)
ResponderExcluirBeijos,
Manelson.