quarta-feira, 29 de julho de 2020

Isso não é um poema

Esses dias tive um alumbramento. 

Entendi tudo. 

A história de dormir humano e acordar 

borboleta

E dormir borboleta e acordar 

humano. 

Momentos epifânicos que chegam e partem como meteoros se esfregando na atmosfera

Como tua vida na história do universo. 


Roço no sertanejo, mas vi 

Que se você me chama de chaleira, eu te chamo de fogão. 

Fria, quente, fria, quente, fria, você diz. 

Você não entende por quê, claro

Eu entendi. Eu te digo.

Porque fogão não se sabe fogão. 

E eu não entendo porque consigo me deixar esfriar

Me deixar borbulhar 

Ora estou aqui, ora estou a perder 

de vista. 

Ora parada como a morte, 

Ora a não caber em mim e querer 

Evaporar

E entendi que não me sabia chaleira

Só te sabia fogão. 

E você não se sabia fogão

Só me sabia chaleira. 

Fria, quente, fria, quente, fria, você, com razão enviesada, 

dizia.


Cansei dos nossos vazios.

Das vírgulas 

Das pausas 

Do dançar lento e tão pior do que imaginei


Cansei de ser prolixa

E engraçadinha

E fofa

Cansei de ser quem eu achava que você queria

E ver nos teus olhos uma ponta disfarçada de decepção

Porque a máscara sempre cai afinal. 

A chaleira esfria

O fogão perde o gás

Perdemos o tesão e passamos a apenas a ser isso

Uma chaleira fria, sobre um fogão sem gás.



Um livro pouco marcante e despretensioso, como nossa história, que habita algum ralo entupido da minha memória, perguntava “afinal, que graça tem perseguir algo que sabemos de antemão que vamos pegar?” E meu primeiro ímpeto é responder que você jamais soubesse que poderia mesmo me pegar. Depois aceitei. Eu era sua, aberta, escancarada, pornográfica, repulsivamente entregue. Pergunte às crianças. Para elas a graça é justo essa. A previsibilidade. Pergunte, também, ao pó, que um dia foi algo, virou pó, voltará a ser algo, e retornará ao pó. Que ideia mais idiota e incabível essa, de não querer perseguir o que sabemos ganho. Pessoalmente, desisto da caça se 


segunda-feira, 13 de julho de 2020

mãos doadas

A vontade era de meter as mãos nos bolsos, mas precisava dá-las a sua filha, já com sete anos mas ainda tão apegada, e a seu filho, que queria porque a irmã queria. O caminho para escola não era longo, nem desagradável. Mas, para si ela podia confessar, parecia o contrário quando se é a Pessoa Responsável. O bebê já estava na creche, os seios agulhando e o coração apertado como de costume, após um choro sincero de fim do mundo, entregue, escancarado, de que só os bebês são capazes, o choro da separação e do que para eles, de fato, é o fim do mundo.

Todas as manhãs eram iguais. Filha que não quer acordar, filho que não quer se vestir, bebê que não quer sossegar, marido que não quer ajudar. E eu, que não queria ser quem sou durante aquela primeira hora. E todas as manhãs são indícios de um dia duro pela frente, mas ainda assim um dia útil, com cada coisa previsivelmente organizada em pequenos caos. Caixinhas de surpresa paradoxalmente transparentes, carregando dentro de si uma pequena luta a ser enfrentada, um esforço violento contra a inércia a que todos os dias desejo sucumbir.

Chegando na escola, o primeiro grande alívio do dia. As crianças entregues a tempo. A leveza de andar com as mãos nos bolsos. O fone de ouvido criando a bolha que o trem lotado estouraria. Uma hora e meia até o próximo caos. Usei esse tempo para ouvir músicas que me entristecessem um pouco: a ideia é deixar que coisas de fora me entristeçam para eu parar de pensar na tristeza de dentro.

Não consigo lembrar exatamente quando percebi que estava fugindo todos os dias, mas como não sabia e nem tinha interesse suficiente para fazer diferente, estava fadada a repeti-los para sempre. A ideia é desesperadora. Todos os dias acordar fugindo da próxima hora, todas as noites me deitar armada para começar de novo. Mas pelo menos cada dia começava e acabava como o anterior. Sem grandes surpresas, sem evoluções, sem revoluções. Sozinha, tentando me libertar da massa negra que me tensiona os ombros e me faz olhar pela janela sem conseguir chorar, como deveria.

Depois o alívio de sair do trem. Já com cheiro de mundo, ando com as mãos nos bolsos até chegar ao trabalho. Cinco minutos adiantada como de costume, espero. Toco a campainha e ouço Theo gritando meu nome. Sua mãe abre a porta e, enquanto ele se enrosca em minha perna, rapidamente me atualiza: "febre essa noite.... almoço vai ser batata doce e carne moída... feijão de molho por favor... lição de casa da Alice... sem natação hoje, claro... não esquecer de pendurar a roupa... se der tempo, passar... mas o Theo, ele é o que importa. O resto pode esperar. Tchau, estou saindo, até mais tarde."

Theo que importa, e Alice, claro. Todo o resto pode esperar, ok? São eles que importam. Todos os dias a mesma ladainha. Entendo. Eu também acho que meus filhos são tudo quando estão longe. Minhas próximas horas, eu sabia, seriam com os pequenos desesperos dela, estranhamente mais toleráveis.

O dia passa, bom e ruim. Nenhuma surpresa. Escurece e parto. Aproveito as poucas horas que ainda terei para meter as mãos nos bolsos, até não ter escolha a não ser esquentar as mãos dos meus. 

Um dia uma desconhecida me perguntou, com um recém-nascido no colo e os olhos embargados e suplicantes, se eu me arrependia de ter filhos. Não precisei pensar muito. Fiz que sim com a cabeça, mas não quis chorar. Já tinha ruminado muito o assunto, já tinha me culpado e desculpado. Sabia a diferença entre esse arrependimento e o amor aos meus filhos. Sabia também que seria minha cruz para sempre. Então sei que esquentar-lhes as mãos, afinal, é o mínimo que posso fazer. Um lembrete, dentre tantos o dia todo, todos os dias.

quinta-feira, 9 de julho de 2020

2003

Remexendo no passado, achei isso aqui de 2003, num blog que tinha com o Rodrigo Duarte Garcia e o Joao Jungmann. Cada um foi prum lado mas os bits e bytes imortais nao nos deixam esquecer que um dia fomos adolescentes:

Botões de sangue 

A pergunta é meio complicada, mas vamos lá. Quando o telefone tocou, eu achei estranho. Aquele não era meu toque. Aquele não era seu toque. 

E quando chegaram as flores, eu não vi rosas vermelhas, mas um buquê de bolhas de sangue, maduras, prestes a estourar. Quando não houve mais ponte que ligasse nossos extremos, ficou o luto, mas não a angústia. A angústia de saber que é possível. Se não é possível, se não há pontes, túneis e nem pernas dispostas a camelar, só há luto. O alívio do luto. A plenitude do preto, que absorve incondicionalmente. As lágrimas pesadas de certeza. Certeza da dor. E não lágrimas sem sal, carregadas da dúvida de se vale
a pena
a queda-
livre. 

O cabelo caiu para o lado quando a cabeça pendeu para a esquerda. Sempre abri a porta assim, com um sorriso, ansiosa em ver uma certa apreensão nos olhos de quem me via. E poucas vezes isso acontecia. Esse é o problema de ser mais acelerada que o resto do mundo. Sempre esperamos que gastem com a gente a mesma energia que gastamos com os outros. Nunca é assim. Resolvi não gastar mais energia e não pender a cabeça e não deixar caírem os cabelos. 

No telefone, na campainha, até mesmo no e-mail. Odeio ver o cursor piscando. É que nem um bate-pé impaciente. De impaciente já tenho eu. E de paciente, no sentido médico, também. Paciente de impaciência. 

Talvez seja o caso de aprender a tocar violão, sei lá. Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça... Ou gaita. Gaita é bom porque dá para levar no bolso. Não sei por que digo isso se as roupas que uso não tem bolso nem graça. 

Só assim posso correr no jardim e ver os botões de sangue florescerem sem me machucar. A música é capaz de me mostrar o que há de mais sereno e aprazível no mundo lá fora. Mas as campainhas e toques que me circundam não são músicas. São desmúsicas. Qual o oposto de música, afinal? Silêncio é que não é; a própria música é o silêncio em movimento. Música não tem oposto, daí a impossibilidade de não gostar de ouvi-la. Mas as campainhas que soam desesperadas me procurando são o oposto da música que ainda não tem nome. Elas me lembram que alguém por aí ainda tenta acessar meu coração sem autorização. E é só por isso que não levo comigo senão memória e vontade de não-viveres, de não repetir erros. E é só por isso que decidi nunca mais sair de casa.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Pausemos

Olhos recaindo sobre os mesmos objetos.
Dia apos dia apos dia.
Nada muda e o mundo todo se revira.

Ninguem sabe bem como agir.
Todos julgam.
Todos querem estar certos. (Isso nao muda)
Um diz que o mundo nunca mais sera o mesmo.
Eu olho pela janela e tudo eh exatamente como sempre foi.
Tambem eu quero essa Grande Mudanca
Tambem eu quero crer que toda a tragedia traz embutida uma evolucao.
Mas os socos e pontapes, silenciosos como uma mamba
Te esfregam na cara a real natureza humana
De nunca, nunquinha mesmo, se contentar.

A pausa ajuda a venerar o passado
A pausa tenta limpar o campo para o futuro
Mas a pausa destracalha o presente.
(E nao vivemos senao nele)

A pausa, dizem, nos fara valorizar o quintal.
Mas na verdade, a voz que soh eu ouco me diz:
A pausa te faz querer ver o que tem
la embaixo 
do precipicio.

Dead end

Out and into the blue
I fear (and throw myself into) the unknown

I bought a house in a
Dead-end street
So I could always go back
Where I came from

But as with any fear
It comes with strings and longings attached
The longing of not belonging
Anywhere, to anyone

I visit the bathroom many times a day
So I can be alone
So I can flush and start anew
I visit the past, I lock the door
I hear poundings from the future

I wish to be here now.
It’s never now. It’s never here.
I wish I could count breaths
But the truth is I despise needing them
It’s uncanny
I will never be free, and somehow, that’s ok too.

Go ahead the extra mile
Just remember it’s a dead-end
You need stamina to come back
Or you might end up dead.

Isso não é um poema

Esses dias tive um alumbramento.  Entendi tudo.  A história de dormir humano e acordar  borboleta E dormir borboleta e acordar  humano....